O autor, o editor e o revisor no cenário de democratização da escrita

Luís Fernando Veríssimo

Tarefa complicada a do revisor de texto e, em Cuidado com os Revizores, Luiz Fernando Veríssimo apresenta dificuldades que podem envolver a relação complexa entre autor e revisor. Segundo ele, o escritor convive, cotidianamente, com o terror do erro de revisão e, jocoso, levanta a hipótese de muitos autores acreditarem na existência de uma conspiração contra eles. Quais não seriam os problemas, se usassem palavras como “ônus” e “medra” e houvesse erro por parte do revisor? Em História do Cerco de Lisboa, obra de José Saramago publicada em 1989, o protagonista Raimundo Benvindo Silva é um revisor de textos, solteiro, com mais de 50 anos. Ao fazer a revisão do livro História do cerco de Lisboa, ele rompe com o mandamento máximo dos revisores: não alterar o conteúdo do texto. Em frase decisiva da narrativa, acrescenta um “não” e contraria, assim, a história oficial.

A crônica de Veríssimo e a obra de Saramago tratam, cada uma a seu modo, dos limites das ações do revisor e discutem, mesmo que de forma indireta, a questão da autoria. É consenso afirmar que o sentido de um texto não é algo dado a priori, estável e imutável, que basta ser “descoberto” pelo leitor. A linguística e a teoria literária moderna promoveram revisão no problema da interpretação e, assim, não se pode mais acreditar que o sentido de um texto deva ser buscado na intenção do escritor. Sabe-se que ele, autor, não é a fonte absoluta do sentido, pois, em sua fala, outras falas, inúmeras, também se pronunciam. Se o sentido de um discurso é construído e não descoberto, se o leitor deixa de ser o “receptor” e passa à posição de sujeito ativo, qual não seria o papel do revisor, também leitor do texto antes que ele chegue ao destinatário final?

Veríssimo, ainda em Cuidado com os Revizores, afirma que “Todo texto tem, na verdade, dois autores: quem o escreveu e quem o revisou.” Isso porque, entre outros aspectos, muitos escritores contam com o revisor para a colocação das vírgulas, para o uso ou não do acento grave e para outras intervenções gramaticais. Esse último, como especialista, tem domínio sobre os mecanismos da língua, de modo a garantir a clareza, a coerência e a correção textual. O conflito entre autor e revisor, entretanto, ultrapassa os limites das questões gramaticais ou da troca de uma palavra e a consequente mudança de sentido, mesmo que tais ações tragam prejuízos para autor/texto. Por ocuparem lugares sociais distintos, escritor e revisor veem a produção textual como objetos diferentes. Frequentemente, o autor considera o que escreveu como algo que, por expressar-lhe a visão de mundo, revelar-lhe sentimento, não tem vida própria, existência apartada dele, autor. O revisor, por sua vez, relaciona-se com o texto de outro modo. Cabe a ele, dentro de seus limites, garantir a clareza e a coerência textual, procurar transmitir a ideia do autor da melhor e mais correta forma possível— e tais ações são profundamente complexas —, sempre respeitando o estilo do escritor e considerando-lhe o contexto e o do leitor. Para desempenhar tal tarefa, o revisor coloca-se em posição privilegiada, pois o olhar à distância facilita a visão objetiva e imparcial. O questionamento sobre a função do revisor, assim, torna-se mais intrincada: o papel do revisor aproxima-se da coautoria?

Além das considerações sobre o papel do revisor, este texto tem também a intenção de levantar o véu -apenas levantar – de questão significativa da atualidade: a democratização da escrita, o papel das editoras e, por fim, o papel do revisor. Rápida pesquisa na rede mundial permite encontrar editoras que oferecem o serviço de edição e publicação de livros, em movimento paralelo ao das chamadas grandes editoras. A Editora In House, localizada na cidade de Jundiaí – SP, por exemplo, em seu sítio, apresenta o slogan “nós realizamos o seu sonho de publicar um livro”. Há mais de 10 anos na área de edição de livros, a In House tem possibilitado que diferentes pessoas gravem, na letra impressa, a própria visão de mundo, as experiências de vida, as experiências profissionais, os sonhos e as ilusões. Tal fenômeno, no entanto, não se restringe à In House. Assim, diante de tal quadro, qual será o papel do editor e o do revisor em relação a esse novo escritor não profissional, daquele que publica o livro sem o aval da academia ou apartado dos critérios editoriais tradicionais?

Inegavelmente, no novo cenário de democratização da escrita, e todas as questões relativas à pós-modernidade e à pós-cultura serão, neste texto, deixadas de lado, impõe-se pensar sobre os novos papéis de editor e de revisor. Se os limites de ação do editor, disciplina que se iniciou no século III a.C., nem sempre estão claros, ele se destaca-se, hoje, como aquele que torna possível aos autores não profissionais chegarem a seus leitores. O mesmo ocorre com quem tem a tarefa de preparar os escritos dos que, ainda que tenham ideias a comunicar, sentimentos, experiências a trocar com os leitores potenciais, muitas vezes não têm familiaridade com o texto escrito. Embora a atuação do revisor deva estar fundamentada no corrigir os erros e no buscar o texto claro e acessível ao leitor, ele passa a ser, mais decisivamente, o mediador entre o significado intencional do autor e o significado recebido pelo leitor. Assim, para desempenhar adequadamente sua função, o profissional deve despir-se de conceitos pré-estabelecidos, reconhecer as variedades linguísticas e perceber os diferentes contextos de produção do texto. Tal nova conjuntura permite ao revisor, de posse do conhecimento dos muitos usos possíveis das estruturas da língua, poder posicionar-se diante da norma padrão, aceitá-la ou recusá-la, criticá-la e lutar por sua transformação.

As formas da escrita refletem — não se consideram aqui as sociedades ágrafas, que se valem de outros recursos a fim de preencherem as funções que a escrita desenvolve na área cognitiva —, moldam a visão que os falantes têm da própria língua e moldam as relações que os indivíduos mantêm com a sua sociedade. Considerando tais observações e o contexto de democratização da escrita, define-se a importância das editoras, dos editores e do revisor de texto. Ao assegurarem aos autores profissionais e aos não profissionais a possibilidade de publicarem seus escritos, de atingirem seus leitores, colaboram para a democratização da escrita e para a construção de uma sociedade plural.

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